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Impresso ou digital não é uma luta entre o bem e o mal
- 17/11/2014
- Category: Notícias
Por Ivani Cardoso
Para aqueles preocupados com o envolvimento intenso de crianças e jovens com o mundo digital, a professora Carla Viana Coscarelli, da Faculdade de Letras da UFMG, em Belo Horizonte, tranquiliza e ainda explica que hoje as oportunidades de leitura e produção de bons textos são maiores. “Se bem orientados”, ela garante, nossos alunos serão capazes de compreender e produzir textos que as gerações anteriores não tiveram a oportunidade de produzir”. Carla, que será uma das palestrantes da CONTEC Brasil Belo Horizonte, no dia 18 de novembro, na Bienal do Livro de Minas Gerais, tem pesquisado a leitura em ambientes digitais e afirma que o importante é criar formas de usar aplicativos e programas, sites, blogs e outras ferramentas para ajudar os alunos: “Eles precisam aprender a ser bons leitores e bons produtores de textos multimodais, bons aprendizes e bons comunicadores. Assim, com certeza, serão cidadãos preparados para a sociedade contemporânea.” Seu interesse pela leitura certamente vem desde a infância. Criada em um ambiente onde os livros estavam por toda a casa, ler para ela era como tomar café, almoçar e jantar, tomar banho, escovar os dentes. É autora de vários livros, entre eles Leituras sobre a leitura. Sobre o desafio de incorporar o universo digital na educação, ela afirma que antes de tudo é preciso repensar a educação: “Eu não sei se as escolas estão preparadas ou se preparando para essa mudança. Não basta colocar computadores nas escolas e replicar neles as práticas tradicionais, é preciso criar formas de usar esses equipamentos que espelham uma visão de educação para o século XXI.
Como começou o seu envolvimento com os estudos sobre a leitura?
Isso vem de longa data. Ainda na graduação, fui bolsista de um projeto de alfabetização de adultos e me encantei com a aprendizagem da leitura. No meu mestrado, desenvolvi pesquisa sobre a leitura, numa perspectiva mais cognitiva, procurando verificar como as crianças aprendiam a ler retomadas pronominais (anáforas) e daí nunca mais parei de estudar a leitura. No meu doutorado trabalhei com as inferências que os leitores faziam na leitura de textos multimodais. A leitura é um assunto fascinante e sabemos muito pouco sobre ela. E pouquíssimo do que sabemos vai para a sala de aula. Precisamos dar um jeito nisso (risos).
Você foi uma leitora desde criança?
Sempre gostei de livros e de histórias. Na minha casa, meus pais sempre leram muito. Ler fazia parte do cotidiano da minha casa. Tínhamos livros na cabeceira, na estante, na escrivaninha, na mesa, em todo lugar. Cresci com eles. E ainda tive a sorte de ter um irmão que gostava de ler para mim, quando eu ainda não sabia ler. Lembro que, no verão, passávamos alguns dias na casa de praia do meu avô e fazia parte dos preparativos da viagem sair para comprar biquíni e livros para levar. Lá, todo mundo lia depois do almoço. Era natural, fazia parte da rotina. Eu nem percebia que isso não era a rotina de todas as pessoas. Ler era como tomar café, almoçar e jantar, tomar banho, escovar os dentes.
Recentemente saiu matéria sobre a opinião de pesquisadores sugerindo que ler para uma criança com aparelho eletrônico prejudica a dinâmica que impulsiona o desenvolvimento da linguagem. Concorda?
Acho engraçadas essas afirmações. A mídia gosta de falar mal de computadores e ambientes digitais. É uma pena. Tudo depende da forma de ler. Ler um texto na tela ou ler no impresso não faz muita diferença se o texto é o mesmo. Não devemos confundir livro com jogo, por exemplo. Comparar essas duas coisas pode gerar resultados confusos ou equivocados, pois um jogo ou um livro interativo podem gerar resultados e o desenvolvimento de habilidades distintas daqueles gerados pela leitura de um livro ou de um texto impresso. Não é questão de ser melhor ou pior, mas de ser diferente. Existe uma premissa nessa reportagem que é a da substituição. É como se livros não fossem mais existir. Precisamos pensar que os aparelhos eletrônicos são mais uma opção de suporte de textos para a leitura. O ideal é que os leitores sejam capazes de ler diversos gêneros textuais. Só ler romances ou só jogar vídeogame, só assistir TV, só comer salada, só fazer ginástica o dia todo é ruim, faz mal, é desequilibrado. Precisamos pensar no equilíbrio da leitura. Ler de tudo um pouco sempre.
Os livros impressos têm o componente emocional? Se levarmos em conta essa questão, a mudança para o digital não vai deixar a leitura com menos emoção?
Não podemos dizer que os livros têm um componente emocional. A emoção está na pessoa que lê e não no livro ou no computador. O texto – aqui penso em um conceito bem amplo de texto e que vai além do texto verbal – vai ativar essa emoção ou não. Você pode ler um poema e chorar. Outra pessoa pode nem querer ler o poema, ou ler e não se emocionar com ele. Bons textos, sejam eles impressos ou digitais, parecem ser aqueles capazes de ativar as emoções de mais pessoas, ou de ativar mais profundamente essas emoções. Se a leitura no impresso ou no digital é uma escolha do leitor, se é do interesse dele, se ela é feita com prazer e envolvimento, ela vai, inevitavelmente, gerar emoções. Um alerta: não podemos trabalhar com essa concepção dicotômica de impresso e digital, em que normalmente o impresso é “do bem” e o digital é “do mal”. Ela traz interpretações muito equivocadas dos fatos. Os dois se complementam. Não são antagônicos.
Como as escolas e os professores estão se preparando para esse mundo digital?
Essa é uma questão muito delicada. Os computadores estão nas escolas, mas as escolas não estão devidamente preparadas para o uso efetivo e eficiente dos computadores. Um dos motivos é que ainda não sabemos exatamente como fazer isso. Ainda não sabemos exatamente quais são as melhores práticas para explorar o computador (celulares, tablets, etc) em sala de aula. Outro motivo é que temos uma concepção de ensino-aprendizagem ainda muito voltada para o conteúdo e não para o desenvolvimento de habilidades cognitivas, como o raciocínio lógico. Nossas práticas escolares ainda são, em sua maioria, centradas no professor e na aquisição individual de um conteúdo teórico, que, normalmente, está no texto verbal, ao passo que incorporar o computador na escola requer uma visão de educação centrada no aluno, na prática (ou aplicação de conceitos), em trabalhos colaborativos realizados em equipe, na busca e no compartilhamento de informação, no trabalho interdisciplinar e na multimodalidade.
O que é preciso fazer?
É preciso fazer uma educação muito diferente e isso é difícil de se realizar se continuamos teimando em ter como objetivo que todos os alunos façam, individualmente, a mesma prova conteudista de múltipla escolha no final de cada etapa para ganhar x pontos. Para incorporar o universo digital na educação é preciso, primeiramente, repensar a educação, e eu não sei se as escolas estão preparadas ou se preparando para essa mudança. Pode ser que a escola resista a essa mudança e mantenha-se como um mundo à parte. Isso seria muito ruim. Espero que a escola abrace o desafio de fazer uma educação que prepare os alunos para a vida do século XXI.
Poderia falar sobre o letramento digital?
Não dá para falar de letramento digital sem falar de letramento e não podemos falar de letramento sem citar o conceito da nossa grande mestra Magda Soares. Para ela, letramento é o “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva as práticas sociais que usam a escrita.” (p. 15). O letramento, ou seja, a capacidade de usar a leitura e a escrita com competência, possibilita ao leitor exercer a sua cidadania. E esse exercício da cidadania inclui, hoje, o acesso aos ambientes digitais e a competência para usá-los em diversas situações e para diferentes propósitos. O letramento digital, por sua vez, seria uma ampliação da noção de letramento, incorporando as habilidades requeridas pelos ambientes digitais como, por exemplo, saber ligar o computador, teclar, saber usar o mouse, lidar com arquivos, buscar e selecionar informações (navegar), saber se comunicar por diversos programas e aplicativos, entre inúmeras outras habilidades que o computador, os tablets, celulares e ambientes digitais requerem. O letrado digital, então, seria aquela pessoa que domina (não completamente, porque isso é quase impossível) habilidades para usar com fluência os computadores para buscar e produzir informações. Lembrando que podemos ter diferentes tipos e níveis de letramento digital. Um programador tem um nível de expertise e habilidades diferentes daqueles conquistados por um usuário comum da Internet, por exemplo.
A tecnologia está trazendo também novas formas de pensar. Em que matérias esse envolvimento influencia mais?
Esta é uma pergunta muito difícil de responder. Não conheço estudos sobre isso. A Internet disponibiliza muita informação para quem quiser aprender. Mas, para isso, é preciso que o usuário seja um leitor fluente, autônomo e disciplinado.
Os alunos de hoje vivem no mundo da Internet, dos aplicativos, das redes sociais. Esse aluno é mais disperso para o conteúdo escolar. Como lidar com ele?
Pode ser que o aluno seja mais disperso para os conteúdos escolares, se esses conteúdos não são do interesse dele ou não são trabalhados de forma atraente e que faça sentido para ele. É difícil alguma pessoa se envolver com alguma coisa que não faça muito sentido ou para a qual ela não perceba uma utilidade. Não há prazer nisso. Não há uma fórmula mágica para atrair a atenção dos alunos, mas envolvê-los como protagonistas das situações de ensino-aprendizagem é um caminho que costuma dar certo. Se as TICs estiverem em jogo, sendo usadas como fonte de informação e formas de compartilhamento de produtos gerados pelos alunos, então, acho que é um tiro certeiro!
Crescem a cada dia empresas digitais que desenvolvem aplicativos educacionais. Como separar o joio do trigo?
Infelizmente ainda temos mais joio do que trigo. A maioria dos aplicativos e jogos educacionais que eu conheço ainda está muito presa ao ensino tradicional, alguns têm uma preocupação excessiva com o conteúdo e com o controle do professor sobre o que o aluno fez ou vai fazer, se acertou ou errou. Andréa Ribeiro e eu fizemos análise de muitos jogos para alfabetização e, infelizmente, encontramos poucos que atendessem aos critérios de análise que usamos. Temos um potencial muito grande que pode ser explorado.
O que é um bom aplicativo educacional?
Há inúmeros aplicativos interessantíssimos disponíveis que podem ser usados para fins educativos. São aplicativos que lidam com imagens – fotografias, vídeos – e/ou áudios, que ajudam a fazer quadrinhos, fotonovelas, hipertextos multimodais, podcasts, gráficos, infográficos, wikis, entre outras coisas. Não precisamos tanto de aplicativos educacionais. Precisamos é de criar formas de usar os aplicativos e programas, sites, blogs, etc, para ajudar nossos alunos a aprender sobre diversos assuntos, aprenderem a ser bons leitores e bons produtores de textos multimodais, bons aprendizes e bons comunicadores. Assim, com certeza, serão cidadãos preparados para a sociedade contemporânea.
Os professores devem dar indicações de leitura ou deixar por conta dos alunos? Os clássicos, por exemplo, devem constar dessas indicações?
Em relação à literatura, indicações são sempre bem-vindas. O professor precisa orientar os alunos a respeito das leituras que seriam importantes para eles. Por isso, essas escolhas precisam ser muito bem feitas e é bom que sejam discutidas com alunos. Dar um leque de possibilidades é muito bom. Isso não impede que seja feita uma negociação para que todos leiam o mesmo livro para discutir e fazer trabalhos sobre ele. O que não pode acontecer é a atividade de leitura ser limitadora, castradora, como acontece com as provas que exigem que todos os alunos cheguem a uma mesma interpretação sobre o livro e que não aceitam interpretações alternativas. Ou aquelas atividades que usam o texto literário apenas para ensinar aspectos formais do texto, como sintaxe tradicional, figuras de linguagem, métrica, entre outras. Precisamos explorar os textos literários em sua singularidade, mas também pensar nas inúmeras conexões que eles fazem com outros textos, outros temas, com o mundo e com a vida.
Qual é o segredo para despertar o interesse pela leitura em qualquer idade?
Eu queria ter essa resposta. Alguns fatores influenciam o interesse pela leitura: um deles é a fluência, ou seja, se a leitura é um ato que se realiza sem muito esforço, ela é feita com mais prazer. Se você é um bom nadador, nadar é um ato mais prazeroso para você do que para quem não sabe nadar, não é mesmo? Se ler requer um esforço muito grande, ela deixa de ser gostosa. Por isso, é preciso ajudar nossos alunos a desenvolverem habilidades fundamentais da leitura desde muito cedo, para que se tornem fluentes, e não precisem encarar muitas dificuldades na hora de ler. Outro fator importante é a curiosidade. Ela nos leva à leitura, à busca por respostas, ao desejo de conhecer textos, histórias, explicações e traz novas perguntas, gerando um ciclo que não se encerra.
O mundo digital empobrece os textos dos alunos?
Muito pelo contrário, o mundo digital oferece mais oportunidades de leitura e de produção de textos. Se bem orientados, nossos alunos serão capazes de compreender e produzir textos que as gerações anteriores não tiveram a oportunidade de produzir. Quando eu era estudante de ensino médio, tínhamos lápis, borracha, caneta e papel, e não éramos incentivados a frequentar a biblioteca da escola, que não era muito atualizada nem oferecia muitas opções. Escrevíamos para o professor ler e dar nota. Hoje nossos alunos têm à disposição na Internet uma biblioteca e uma videoteca inesgotáveis e sempre atualizadas, que podem ser consultadas a todo momento. Eles têm muitas ferramentas que possibilitam o uso de cores, imagens, sons, animações e vídeos nos seus textos. Além disso, podem disponibilizar as suas produções para o mundo e receber comentários sobre elas dados por várias pessoas diferentes. Numa situação dessas, não vejo como o mundo digital possa empobrecer os textos dos alunos. Cabe ao professor agora ajudar os alunos a utilizarem da melhor maneira possível essas fontes e ferramentas que eles têm à disposição. A produção de textos digitais é mais complexa, pois os alunos precisam saber explorar de forma adequada e bem articulada outras linguagens e recursos semióticos que se integram à linguagem verbal.
Na Faculdade de Letras onde você leciona, os alunos estão mais voltados para o digital ou continuam mais interessados no livro impresso?
Na Faculdade de Letras da UFMG os alunos costumam gostar muito do livro impresso, mas a maioria deles explora e se interessa bastante pelos ambientes digitais. Temos feito muitas pesquisas sobre portais do governo, sobre infográficos digitais, sobre a leitura de hipertextos, de web jornais, entre outras, e temos cursos a distância que são sempre muito disputados. É visível o interesse dos alunos pelos textos digitais. Nas disciplinas, eles costumam procurar textos em sites de autores, nos portais de periódicos e nas revistas eletrônicas. Muitas vezes é mais rápido, fácil e prático encontrar textos em pdf do que ir à biblioteca ou esperar que o livro encomendado chegue.
Como as escolas de Minas Gerais estão lidando com o conteúdo digital na aprendizagem?
A maioria de nossas escolas tem computadores, laboratórios de informática e acesso à Internet (isso não significa que tudo funcione sempre bem e que a conexão seja muito boa). No entanto, não podemos fazer generalizações. Existem algumas escolas mais preocupadas com isso do que outras, existem professores empenhados em realizar um trabalho explorando os ambientes digitais e outros que ainda não se importam com isso. Usar a informática para fins didáticos não é uma tarefa trivial. É preciso que os professores recebam informação e capacitação para fazer isso de forma inovadora, responsável e bem fundamentada. Não basta colocar computadores nas escolas e replicar neles as práticas tradicionais, é preciso criar formas de usar esses equipamentos que espelham uma visão de educação para o século XXI. Como eu disse, o computador na escola requer uma visão diferente de língua, de linguagem, de texto, de ensino, de aprendizagem e isso precisa ser feito com discussão entre professores, coordenadores e gestores. O uso efetivo do computador e da Internet precisa fazer parte do projeto pedagógico das escolas e não depender apenas da iniciativa isolada de alguns professores que percebem e querem explorar as potencialidades deles.
Referências bibliográficas
Soares, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica, 1998.
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